sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

As Víboras do Estado

Cazzo, eu odeio a polícia, vociferou certa vez o Guido. Seja na Itália, Alemanha, onde for. Scheisspolizei! Meu amico de Padova, Guido Caporalli, teve suas experiências que sustentam seu desprezo aos cachorros da lei. No Brasil, nunca me senti protegido pela polícia. No grosso, eles só aparecem depois das ocorrências, quando tudo já está manso. Particularmente, creio que políticas sociais são mais efetivas nas questões de segurança pública do que pançudos fardados. Já na Ucrânia, a estrutura criminosa se desenha de outra forma, ainda que certas semelhanças sempre serão encontradas. Aqui na Nova Ucrânia, como dizem, vive-se em estado de apatia geral. Os números estão em queda livre, e a decadência econômica e social é sentida em todas as estruturas do país, inclusive na polícia nacional.
Às vésperas do Ano Novo, Gottfried, Tim, Mareike e eu esperávamos pelo ônibus na estação Traktorni Zavod (Fábrica de Tratores). Ali baixamos do metrô, e pela inexistência de fila, percebemos que havíamos perdido o busito por poucos minutos. Já se fazia noite. Vínhamos de um dia inteiro de percorridos pela cidade e carregávamos a janta em algumas sacolas de compras. Encabeçamos uma nova fila e nos aninhamos buscando calor, já que não havia uma santa árvore para atacar as patadas do vento. Sabendo-se que o avtobus tardaria em torno de uma hora, ao natural sacamos cervejas das sacolas, o que deveria lubrificar os ânimos e fazer da espera algo menos sacal. E foi ali, com as cervejas em punho, ainda cerradas, que dois dedos pesados aterrissaram sobre o meu ombro direito. Giro a cabeça pro lado do toque e palavras são disparadas na minha direção. Respondo que “sorry sir, ia não gavariu pa rússki”. O mesmo me torna a lançar palavras, desta vez apontando o dedo para cerveja. Torno-lhe a repetir que não entendo da sua língua, lamentavelmente. O dos dedos pesados intercambiou olhares com o outro que lhe acompanhava. Pásporti, pásporti, disseram em coro. Receberam três documentos de cor vinho, e um quarto verde amazônia, carnaval e futebol. Concluíram astutamente que lidavam com três alemães e um... sto eta? Brasil, contestei. Brasilia?! Exclamou o primeiro policial. Da, Brasilia, confirmei. Devolveram prontamente os passaportes aos teutos, e reteram o meu. Aos poucos alguns cidadãos se alinhavam à fila. Para não afetar a ordem, os guardas se afastaram poucos passos da parada, e o primeiro, abrindo a mão em leque, me mirou e disse: vem cá. Suka, querem me levar, concluí. O que fizemos de errado? Seria proibido beber em local público? Não pode, todo mundo bebe. A cerveja é proibida, aqui bebe-se apenas vodka. Besteira. Ah, sim, não ofereci nenhum trago a ele. Aceitaria essa infração, é grave. Também não.
O leque de sua mão insistia a fazer brisa e a me chamar. A Mareike, branca como uma batatinha, ficou nervosa e tomou cor de tomate. Definitivamente queriam me levar, não sei pra onde, mas queriam. Eu fingia não entender o abanar da mão do policial. Don´t understand,no rússki... Não movi a pata. De pronto, em meio a toda tensão, um ruído alentador do bolso da minha calça. Era o reverendo do outro lado do telefone. Explico-lhe rapidamente a situação e ofereço o celular ao que retinha meu passaporte. O reverendo fala russo, aclararia a contenda. Depois de alguns minutos o telefone retorna ao meu ouvido. Felipe, ele quer propina, disse-me o reverendo. Dê-lhe 20 grivnas, foi o que acertamos. Tu estás seguro, velho? Imagina se o desgraçado renega os dobrões?! Então terá de fato um motivo condizente para me botar no Ladinha deles. Filho, disse o pai, sai prum canto, dá os pilas pra ele, e vem embora.
Verme estalinista! Então é isso o que queres?! Assomei-me à autoridade, estendi meu braço esquerdo abraçando-lhe lateralmente pela paleta, e o guiei em caminhada até a boca da escadaria do metrô. A fila do ônibus já se fazia grande, e todos nos olhavam. Já estavam cientes do enredo. No entanto, ninguém se manifestou, todos fizeram vista grossa. Que o brasileiro contribua com os cofres da Militsia. Abri a bilheteira, saquei a nota de vinte grivnas, e a depositei num bloco que o filho da puta abrira naquele instante, ao tempo em que disfarçava olhando para o lado. Fechou o bloco. Ele era baixo, mais fraco que eu, e não portava arma na cinta, como toda a milícia ucraniana. Que manivelaço no queixo, sonhava eu. Na cabeça levava um belo quepe. Um quepe enorme, desproporcional ao tamanho da sua honra. Abriu o bloco, percebeu a nota verde e niet, niet, niet, resmungou. Escorregou os dedos a partir do pomo de adão, buscou algo dentro da camisa, e trouxe às vistas uma espécie de um colar com as notas de grivnas em miniaturas de plástico. Agarrou a miniatura roxa e aproximou-a do meu nariz. A autoridade solicitava duzentas grivnas, o equivalente a vinte euros. O telefone chamou novamente. “E aí?” quis saber o reverendo. “Velho, esse bastardo quer duzentos contos!”, esbravejei. O guarda acendeu um cigarro, deu uma tragada profunda e soltou a fumaça meio que fechando os olhos, fazendo balaca. Esse nosso namoro já levava quase uma hora. Passei o telefone mais uma vez ao policial. Por que esse mal parido se encarnou só em mim? Cadê o congraçamento entre as nações periféricas? O que ele pensa do Brasil? Se é dinheiro o que quer, por que não atacou os alemães? Eu não carregava duzentas grivnas na carteira, e se carregasse também não daria, que me levasse preso duma vez. Então, num impulso de raiva, alcei o braço e arrematei o cigarro estacionado no canto da boca da autoridade. Levei o pito até a minha boca, enchi os pulmões, e soltei toda fumaça no belo quepe do cachorro vermelho. Devolvi-lhe o crivo, abri minha carteira, juntei todo aquele fucking papel inflacionado que portava, soquei nas mãos do policial e disse: “That´s all my money!”. Ele me olhou firme, não gostava de compartilhar cigarros. Retomei o telefone, e cego de raiva, tomei o rumo da fila. No quarto passo, me chama o policial: Filipe, Filipe. Retornei ao campo, ele terminava de contar os trocos. A soma era de não mais que noventa grivnas, tudo em nota de um ou cinco. Sim, sou apenas um rapaz latino-americano, não ando com muito mais do que isso. Os dois milicianos vieram ao meu encontro e vomitaram um discurso Piva niet, algo do tipo “estás sendo multado pelo porte de bebida alcoólica em local público”, buscando legitimar a extorsão recém cometida. Recebi enfim meu passaporte. As duas víboras ajeitaram seus quepes, e rastejaram de volta pra toca do Estado.

4 comentários:

  1. Nossa, apesar de ja ter ouvido essa historia conseguistes me deixar tensa novamente. O pior eh que nem tinha aberto a ceva ainda... Ele podia ter dado so uma orientacao. Mas tenho certeza que se tu nao tivesse toda essa altura ele teria te arrancado os dentes no momento do teu ato um tanto petulante e sem nocao de tomar o cigarro dele, haha, tenho ate que rir disso. Bah, que raiva. Cazzo. fernanda.

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  2. ...Era só ligar para o consulado...
    Barbaridade. Histórias de propinas são sempre interessantes de se contar. Mas gostei do pito que deste no cigarrette do paisano. lindo.

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  3. Um lider, neh, Arthur? hehe.

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  4. Era só ligar para o consulado!!
    ótimo arthur! hehe
    Temos o nº do consulado no celular sempre hehehe Ah, e normalmente eles trabalham muito lá, das 9h ás 13h, terças e quintas hehe

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