sábado, 29 de janeiro de 2011

O Gorila da Estepe.

Embora a tarefa de jardineiro glacial me exija relevante esforço físico e traga alguma satisfação (meu desempenho com a pá se aprimora a cada dia), decidi retomar as atividades de desporto à maneira mais tradicional. À míngua do futebol, voltei a malhar. A academia onde passo então a freqüentar, na Rua Pushkinskaya 47, aqui em Kharkov, se apresenta em parte de forma semelhante tal qual no Brasil, ou pelo menos no sul do Brasil. Os aparelhos, as gostosas, e aquela opção detestável por sons eletrônicos nos parlantes do ambiente. Iniciei ontem, tranquilo. O orientador que por lá andava nem me deu pelota, treinei em paz. Porém a paz poucas vezes pertenceu às estepes deste território cossaco. E assim, hoje, no segundo dia de malhação, em meio às minhas primeiras repetições aproximou-se este simpático e prestativo armário de madeira da taiga siberiana com patas: Vladimir. O Vladimir, embora retaco, é muito largo e forte. Aliás, todos os homens dessa academia são muito grandes e largos, mas largos mesmo. São tão largos que só entram em casa pela porta da garagem. E eu? Eu no Brasil me considerava, cheio de audácia, um meia-boca. Aqui sou um frangote. Mas o futebol brasileiro, desde o esquadrão de ouro, nunca teve a força como maior atributo de sucesso, senão a técnica e a habilidade, aliados a um toque de malícia. Ou seja, sou um frangote pentacampeão. Tak.
O Vlad é um daqueles orientadores de academia que se deixam tomar pelo entusiasmo. Mas a dose excessiva de entusiasmo dele acabou comigo. O desgraçado me passou os exercícios mais estranhos e complicados, com a maior carga de peso possível que eu conseguia suportar. E ele treinava junto. A cada intervalo meu, ele ia fazer algum exercício. Na maioria das vezes ele pendurava quatro anilhas de dez quilos nos ganchos do cinturão de H-man, se pendurava no galho de metal tal qual primata, e fazia incontáveis apoios aéreos, guinchando, berrando, baforando. Uhh!!! Uhh!!! Arghh!!! E não bastasse a sequência “alternativa” que ele me impunha, o cara implicou com o meu silêncio. Eu deveria respirar com gana. E gritar. Como ele. Uhh!!! Ráa!!! Puta merda, aonde eu fui parar. E de onde veio esse gorila? Isso é treino pra lenhador, ou pro Dino da Silva Sauro.
Então resolvi entrar na dele. Comecei a fazer cara feia, a puxar e soltar o ar de forma baleiesca, e a gritar Arghh. Da, horosho, dizia o gorila, apontando enorme aprovação na sua cara quadrada. Então, para finalizar a tortura, o Vlad me apresentou um treino abdominal diferenciado, que já batizei de “abdominal islâmico”. Em frente às cordinhas para inchar o tríceps, ele estendeu um tapetinho. Ali ele se ajoelhou, agarrou as cordas e baixou o tronco de maneira que a testa tocasse o tapete e os cotovelos encontrassem os joelhos. Bah, sacramento! Soviético louco! Foi então que percebi que a academia se enchera, e que muitos na sala nos observavam, e que também havia muitos caras com bandanas negras na cabeça, verdadeiros corsários.  Tive que rir. Na verdade dei uma semi-gargalhada. Afinal éramos todos piratas, malvados e temerários. Ajoelhei-me (não sei em qual direção fica Meca), agarrei as cordinhas, apontei a testa em direção ao tapete e Arghhhhhhhh!!! O Vladimir sorriu. O garoto está pronto, deve ter pensado. Sobreviverá às estepes.      

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O tombo do reverendo

Aqui em Kharkov neva todo dia. Pelo menos assim tem sido desde que cheguei, há um mês. A neve é muito bonita sim. Concordo. Contemplar os campos cobertos por aquele branco, a paisagem alva, bah, lindo. Mas a neve também dá muito trabalho, e às vezes pode ser traiçoeira. Sacar a neve da calçada a pazadas e cavocar o gelo da entrada da garagem é atividade rotineira do cidadão residente na Ucrânia.
Um avião rosa pinque com aeromoças rúbias me trouxe até a pista branca do aeroporto de Kiev. Lá me aguardavam sorridentes Rosetchka e o reverendo.  Há tempos não nos víamos nem tocávamos. De pronto, às 4 da tarde tomamos o avtobus ali mesmo nas imediações do aeroporto, ao lado dum pinheiro azul de natal, e tocamos pra casa, Kharkov. Foram dez horas de trecho sobre uma pista congelada, escorregadia, bailando um pra lá dois pra cá. Não foi fácil. O reverendo, que é daqueles senhores que dirige junto com o motorista, não desgrudou os olhos do trecho. E quando o ônibus ameaçava encontrar o barranco, balbuciava: “o-o-pa”. Mas não é bobo esse motorista! Desejava ter a frieza dos que sentavam ao meu lado. Dele papo e risada. Desejava também um trago da vodka deles. O ônibus não tinha toalete. E quando raras vezes parava, a tropa descia desesperada procurando o toalete e ascendendo o pito. E lá do toalete, ainda com a peça na mão, já se escutava o motorista, num azedume, buzinando e gritando e mandando todo mundo entrar de uma vez no comboio, que era tarde, que sua senhora lhe esperava, que queria ver os gols da rodada etc.
Chegamos na praça rodoviária de Kharkov lá pelas duas e meia da madrugada. Que frio. Que gelo. Bom, aqui é tão frio, que ao urinar, o teu líquido se esfumaça de imediato ao tocar o chão. É como se desfazer da água da chaleira.
Acompanhados por cães solteiros esperamos uma hora inteira pelo táxi. Até que o Lada Sedan anos oitenta aparcou. Negociamos o preço com o taxímetro de língua e largamos para Olkowka (leia-se Alcovca), o nosso bairro. O asfalto estava congelado, mas trilhado, o que facilitava a lida no volante para o Serguei, nosso chofer. Deixamos a faixa e percorremos mais ou menos um quilômetro sobre o que supostamente seria uma estrada de chão batido para então alcançarmos nossa casa. Alarmante a imagem da rua congelada. A neve que há dias havia-se acumulado derretera numa tarde de sol, mas ao cair da noite, com a queda de temperatura, congelara o líquido que antes fora neve, presenteando-nos esse espelho ensaboado: nossa rua. O Serguei, conhecedor de sua terra, estacionou o Lada na lateral da rua, sobre um banco de neve, de maneira que pudesse arrancar sem patinar. Estávamos exaustos, mas contentes, por fim chegávamos ao aconchego e calor do lar. Passados alguns poucos minutos, enquanto sacávamos os sapatos, alguém golpeou a janela. Era o taxista, Serguei. Perdido? Dificilmente um taxista se perde. Ao dar meia volta na rua inclinada, o táxi não lograva mover-se do lugar. Empacou. Só patinava. Saudosos de empurrar a velha Caravan do vô, e prestativos que somos, reverendo e eu saltamos porta afora, prontos para servir. O táxi branco estava a menos de cem metros rua abaixo. Fui à frente, com minhas botas ranhuradas, deslizando como se levasse patins nos pés. Atrás vinham Serguei e reverendo, que calçava  seu sapato sola lisa de coveiro. Já quase tocava a lata do carro quando um berro de morte sacudiu as estrelas do céu. Virei o pescoço e mirei uma das cenas mais duras da minha vida. O reverendo havia escorregado e caído de cabeça, com todo o peso de seus pecados. Corri até o seu corpo estaqueado de bruços, virei-o desesperado, e o sangue verteu do seu rosto. Tentei afastar o sangue com a palma da minha mão. Ele corria suavemente. Notou-se que não era grave. Que bom.
O velho recuperou os sentidos e pediu que o levantasse, deveríamos empurrar o taxi. Com a cara rasgada, o reverendo e eu empurramos o Lada Sedan de ré até um banco de neve lateral, de onde o carro arrancaria sereno. O Serguei desceu da máquina, e num gesto de gratidão e comoção, sacou um lenço umedecido e ofereceu-o ao senhor que sangrava. Dado o adeus ao Serguei, tomei o reverendo pelo braço e fomos ao banheiro para cuidar das feridas. Por falta de gelo, colhi neve do pátio e numa bolsinha levei-a até o seu rosto. A face esquerda e o lábio superior haviam golpeado com muita força esse terreno eslavo.  
Na cara inchada e torta do meu pai, o cartão de boas vindas à terra estranha, já cansada de ver sangue.
Naquele dia, bebi vodka com pimenta e mel. E chorei.


quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

O absorvente totalitário

Estou na Ucrânia desde o dia vinte e um de dezembro. Tenho o que contar, mas como nao escrevo há semanas,  nao poderei ser linear. E pra embaralhar um pouco mais, vos anuncio a boa nova, Jesus vai nascer amanha, dia sete de janeiro. Dois natais para fomentar ainda mais as compras e esquentar o mercado? Niet. Isso tudo porque a igreja ortodoxa, predominante no país, utiliza o calendário Juliano, diferente do Gregoriano usado no ocidente. Dito isso, Feliz Natal a todos (nao, nao vou ganhar dois presentes).
Odessa, com toda essa onda chick mick me parece ser a cidade mais apartada da realidade do país. Catarina "A Grande", imperatriz russa, vislumbrou em fazer da cidade a "Sao Petersburgo do Mar Negro". Одеса (Felipe brincando com o teclado), que abriga o principal porto da Ucrânia, é de fato primorosa. Na "noiva do Mar Negro", como é virginalmente chamada, as temperaturas sao um pouco mais amenas, e o turismo toca a economia. O pessoal aqui gosta da pompa, e me parece estar sempre em busca da grandeza perdida, o que, a meu ver, dá um ar kitsch ao local. Mas ser brega é uma liberdade democrática. O pior é ver o Estaline com cuia na mao, como no cartaz abaixo pregado na vitrine de uma loja "fake" da FUNAI, que entre cocares de nativos norte-americanos - pensem no Touro Sentado - mantém em suas prateleiras alguns pacotes de erva de Misiones de la Argentina. Tá bueno, tá cheio de gaúchos totalitários sorvendo um mate em todos rincoes do estado, mas esse qüera eu nao convidaria pra entrar na roda do mate. Se ele soubesse como eu andava vestido hoje, me mandaria pros campos de trabalho forcado na Sibéria. Explico. Estamos como formigas nos preparando para o inverno. Ontem senti tanto frio nas pernas, que tive que comprar uma meia-calca. Nao é ceroulao, é meia-calca mesmo, dessas enfiadas no rego, muito comum por aqui. Esquenta mesmo, e é bem gostosa. Tem mais. Como ainda nao achamos band-aid nas apotecas, enjambramos um módis (os modernos chamam de absorvente) no garrao (que os mesmos modernos chamam de calcanhar) para amenizar a dor martirizante dos calos. Assim fomos comprar erva-mate. Uma afronta binacional, eu sei, mas a necessidade faz o ladrao, ou o sapo pular. Assim, de meia-calca, módis no pé, e mesclando ervas hermanas, tô firme, bem galo, fervendo por dentro e listo pra encarar essa geladeira. Que venha esse minuanozinho!
Amanha bem cedo, Reverendo, Rosetchka e eu partiremos de regresso a Kharkov. A viagem deverá durar nao mais do que dez horas. Buscamos ainda um produto especial que evita o congelamento do sistema hídrico do carro, já que as temperaturas estao variando entre menos cinco e menos dez graus na escala do Celso. Amigos, desconsiderem a falta de "til" e "cedilhas" no texto, o camarada teclado nao está cooperando comigo. Da Svidania.