Existe uma maneira muito particular de os ucranianos classificarem suas cidades em nível de importância. Se determinada urbe possui uma estátua do Lênin, ela é importante, dizem. Do contrário, ela não passa de uma cidadela qualquer. A Ucrânia abriga centenas de cidades importantes, e Kharkov ainda é uma delas. Ademais de o líder-mor bolchevique se levantar imponente e pedregoso na praça central, Kharkov é o maior centro industrial, universitário e cultural de toda Ucrânia.
Comparando as certidões de nascimento dos ajuntamentos urbanos europeus, podemos dizer que Kharkov é uma mocinha de trezentos e cinqüenta anos. Logo após o golpe bolchevique, Kharkov foi nomeada capital ucraniana vermelha de 1919 até 1934. A produção industrial local esteve - sob o comando bolchevique - orientada para equipar o aparato de defesa nacional, fazendo-se assim o terceiro maior centro industrial de toda a União Soviética, logo atrás de Moscou e Leningrado (São Petersburgo). Aqui estão situados alguns gigantes da indústria armamentista, como a Malyshev Factory , uma antiga fábrica de locomotivas readaptada em 1928 para o fabrico de tanques de guerra, como o legendário T-34, o panzer mais produzido durante a grande guerra. Também estão a Morozov Design Bureau (que trabalha conjuntamente com a Malyshev), a fábrica de turbinas Turboatom e a famosa Khartron, que entre outros “spacecrafts”, produziu sistemas de controle para mísseis (SS-18, SS-19) e atualmente fabrica módulos de carga para a Estação Espacial Internacional.
O rayon de Kharkov foi cenário de quatro batalhas durante a segunda grande guerra. Pouco antes da primeira ocupação nazista, a fábrica de tanques foi evacuada pelos soviéticos para os montes Urais, onde continuou produzindo a todo vapor, retornando para Kharkov somente após o término do conflito e conseqüente liberação da cidade. Setenta por cento da cidade foi devastada, dizem os livros. Mesmo sem receber as regalias de um Marshall Plan, a cidade logrou reerguer-se, embora pareça haver se detido nos idos de 1970. O colapso da União Soviética foi extremante negativo para a indústria local, pois acabava ali a bonança do orçamento militar voltado para a defesa, o que sustentava as empresas de Kharkov. Desde aquele então a cidade só decaiu. A readaptação destas empresas centrais (todas estatais) para a economia de mercado e produção civil foi muito custosa. Algumas manufaturas fabricadas na Rússia, e necessárias para a produção de tanques, por exemplo, eram impedidas de serem distribuídas em território ucraniano devido ao rechaço russo à independência da Ucrânia em 1991. A partir dos anos 2000, com a questão mais flexibilizada, empresas como a Khartron, lograram ocupar espaço de relativa importância no mercado, e já não mais usam seus sistemas de controle para o lançamento de mísseis balísticos, senão que para o lançamento de satélites comerciais.
Atualmente, Kharkov se desenha da mesma maneira que a maioria das cidades capitalistas de terceiro mundo. Um centro bonito, limpo, e repleto de vitrines oferecendo prazer momentâneo aos escolhidos, e ao redor, um quinhão de pobreza, feito de gente que vive juntando migalhas para comer.
É sobre os lençóis da frustração que se deita a apatia deste povo, ontem proletários de uma potência mundial, ansiosos pelas regalias do mundo livre, hoje nacionais de uma republiqueta corrupta, em grande parte saudosos da grandeza perdida. Tento carregar-me à época de uma Kharkov no seu esplendor, motivada pela produção científica, pela pesquisa acadêmica e por essas lindas, esguias e elegantes mulheres-espiãs, todas possíveis amantes do “James Bond”. Esta cidade já colheu os fumos da glória, hoje lhe resta pouco. Em meio à velharia pública, estagnação econômica, à chatarra administrativa, Kharkov é mais conhecida pela existência de um clube de futebol mediano: o FC. Metalist, time do Táison, ou do “Táizon”, para quem segue as regras gramaticais lauroquadrianas, é o que faz atualmente de Kharkov uma cidade importante.
Mas o que diremos nós em Porto Alegre, que nem sequer temos uma estátua do Lênin?