sexta-feira, 22 de abril de 2011

Varre pra mãe.


Quando há alguns dias por fim o gelo da cidade derreteu, nos impressionamos com a imundice que aquele cobertor de neve vinha escondendo. Já quase desejávamos a volta daquela maquiagem branca, que amenizava o aspecto cinzento e sujo da gorad soviética. Felizmente, o tempo de paixão veio pra renovar não somente o nosso espírito imundo e encarniçado, mas a paisagem de cinzeiro de toda a Ucrânia independente. Dai-lhe suspiros de aleluia.
Desde ontem, os cidadão ucranianos, e muito provavelmente todos os povos vizinhos que há poucas décadas rendiam culto ao deus vermelho, estão trabalhando em mutirão, na chamada coe tara, catando lixo, serrando e queimando galhos, limpando tudo. Organizados coletivamente, perseguem todo e qualquer papel de bala. Não sobra nada. É realmente impressionante, são como formigas, formigas proletárias. Assombrado, perguntei a alguns conhecidos o que está passando aqui. A resposta é mais do que convincente: Todos trabalham para embelezar e preparar o Estado para celebrar o aniversário de Vladimir I. Lênin, que nascia há cento e quarenta um anos. Sequer nos tempos atuais, onde a ditadura do capitalismo financeiro puxa as rédeas da carroça, esse trilho cultural foi borrado. Até porque enquanto Stálin é até odiado, Lênin é amado pelas pessoas. Não restam estátuas estalinistas por aqui, nem mesmo em sua cidade natal na Geórgia. Já os bustos do Lênin estou até enjoado de ver. Dá mais do que bananeira.

Há cinqüenta anos, uma piazada com menos de dezessete comandava as metralhadoras antiaéreas que derrubaram os aviões mercenários em Playa Girón. Enquanto Jânio quadros proibia o biquíni e ainda acreditava nos braços do povo, Yuri Gagarin decolava para o primeiro voo estratosférico. Gagarin foi obrigado a falar sem cessar num taperecorder durante as quase duas horas de voo. Esse gravador foi desenvolvido em Kiev, e é orgulho nacional. Bom, eu também gosto de cassetes, mas o que fica gravado hoje, respeitando o calendário do Gregório, é o cumple da querida Rosetchka, ou Roseta, ou às vezes chamada de mãe, que aos berros brotou sob a luz daqueles tempos turbulentos. É duro não ter os amigos por perto para celebrar as bodas redondas, é verdade. Às vezes penso, que na fumaceira da vida, já nem importa onde estamos, o que importa é como vamos. De compensação, serve que ninguém precisa do facebook para lembrar do teu aniversário. Aqui todos dizem, “bah, nasceste no vinte e dois de abril, junto com o Lênin! Que honra!”
Camarada, não me leve a mal, mas a honra é do Lênin.      

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Oranje

No mercado público de Leiden, um senhor observa o peixe que repousa, cru, na tendinha de frutos do mar. Toma-o pela barbatana, afoga-o com vontade em um pote com molho de cebolas, alça o braço, e como um engolidor de espadas, mergulha o peixe inteiro, na vertical,  no poço da garganta. Nas vielas e também sobre as pequenas pontes que conectam os inúmeros canais, circula um enxame de bicicletas, veículo sacro, dos mais variados tipos, a maioria ao estilo “Jaiminho, o carteiro”, equipadas não só com cestinhas, mas também com caixotes enormes, capazes de transportar compras, animais, e as crianças alaranjadas nativas da região. Ademais das tulipas, cujos bulbos alimentaram o povo faminto durante a segunda grande guerra, o visitante tem que segurar o chapéu, porque esta terra que fica abaixo do nível do mar não possui nenhum Colosso do Ceará nem montanhas, e o vento te tapeia a cara sem cessar. Mas a ventania irritante também pode ser aproveitada, como no caso dos moinhos, que do grão do trigo fazem a farinha pra vó fazer cuca pra toda a gurizada.
Dentre os países do espaço Schengen, e de todo o mundo ocidental (que é onde cabe esse tipo de comparação), a Holanda, devido a seus conceitos morais e políticos, se diferencia substancialmente. Além da comercialização legal de drogas leves, os holandeses foram os primeiros a levantar as demais bandeiras liberais, tais quais a do casamento entre homossexuais, o aborto, a eutanásia, e talvez a mais interessante, a da formulação de um código de lei que regulariza o direito das trabalhadoras e trabalhadores do sexo. A legalização e conseqüente formulação do “direito das prostitutas” puseram, por assim dizer, ordem no meretrício. Prostíbulos sempre houve, mas após a queda do muro de Berlim, o tráfico de mulheres oriundas majoritariamente do leste europeu aumentou de maneira significante, ao ponto em que as autoridades tiveram que tomar alguma atitude. Então, o governo assinalou alguns pontos das cidades onde os serviços da carne seriam permitidos, e os batizou de redlight district.Os distritos da luz vermelha, como o De Wallen, em Amsterdam, são uma atração à parte. As damas, que agora são trabalhadoras autônomas (a legalização eliminou com relativo sucesso o “cafetão”), alugam janelas para expor-se aos clientes. São prédios com janelas emparelhadas lado a lado, às vezes até o terceiro andar. A disposição das janelas lembra um pouco o antigo “jogo da velha” do Domingão do Faustão, só que com as tias coqueteando com os transeuntes, com o indicador em forma anzol, chamando “vem cá”. É como uma vitrine de manequins vivos.
Os dutch, mais do que liberais avançados, são extremos capitalistas, loucos por dinheiro. Eles pensam mais ou menos assim: Bem, desde que não incomodes ninguém, tu podes fumar teu bequezinho, haxixe, cogumelos mágicos e também desfrutar do calor das senhoras, e se o Estado ainda lucra com tudo isso, perfeito! Os holandeses se acham muito cool, porque enquanto outros países ainda patinam sobre estes temas controversos, pra eles já é fonte de lucro, a exemplo das meretrizes, que pagam seus impostos engordando o caixa da rainha, e se aposentarão como prostitutas amparadas pelo sistema.     
Sem dúvida, o “desapego” religioso joga um rol definitivo na aceitação dessas políticas liberais por parte dos cidadãos. Entre os holandeses, apenas um terço acredita em deus. Outro terço crê que alguma força ou entidade espiritual rege o planeta. A última terça parte se declara completamente ateia. No meu último dia de passeio, fomos convidados para comer um gulash na casa de alguns conhecidos. Bem, nos dirigimos ao domicílio, até que para a minha surpresa nos vimos golpeando a porta de uma igreja. Fomos recebidos, entramos pela “sacristia”, subimos um lance de escadas e nos deparamos com um aconchegante apartamento. O que passa é que as igrejas tradicionais perdem ano a ano sua membresia, e ao esvaziarem-se acabam alugando as boas estruturas eclesiásticas, transformando-as em morada, biblioteca, jardim de infância, ginásio de esportes ou pista de baile. Acho bom que a igreja não vire morada dos morcegos, afinal de contas, se ninguém mais precisa dela, que façam utilidade dela para algo. Ao mesmo tempo, é estranho que o mesmo templo que já foi de muitos, agora é lar de alguns poucos. O mundo é um moinho mesmo seu Cartola. Naquela noite, a igreja abrigou finalmente uma ceia nos moldes originais.  

segunda-feira, 4 de abril de 2011

A Democracia Colorida


“Todos falam do tempo (clima), nós não”.  Assim se pronunciavam os companheiros do Sozialistische Partei Deutschlands (SPD), empenhando-se em deixar claro sua preocupação com o futuro da pátria, para o qual, a melhor doutrina a ser seguida seria o marxismo. Do outro lado da cancha, rebotava a Christliche Demokratische Union (CDU): “Todos os caminhos (formas) do marxismo levam a Moscou”, rechaçando qualquer plataforma socialista baseada em uma experiência autóctone, e que buscasse um caminho alternativo ao da experiência soviética. Mutatis mutandis, o tempo passou e o carrossel já deu muitas voltas. Hoje, nem os vermelhos partidários do ex-chanceler Gerhard Schröder, muito menos os cristãos correligionários da atual chanceler Angela Merkel (conhecidos como Die Schwarzen, ”Os Negros”) ousariam correr o risco de sujar suas gravatas em rinhas ideológicas. Nem há por quê. O marxismo não melindra mais as aspirações do capital livre, portanto, as discussões seguem outra lógica, manifestam novas e velhas aspirações de poder, e se caracterizam por condutas diferenciadas no palco político.
A política alemã possui peculiaridades interessantes, explícitas mais que tudo nos personagens que controlam as salsichas do Bundestag. Começando pela pessoa número um do gabinete governamental, Frau Angela Merkel, também conhecida como “TeflonMerkel”, porque nenhuma crítica “gruda” na sua pessoa. Angela Dorothea Kasner, filha de um pastor luterano (talvez óbvio) mais conhecido como o “Rote Kasner” (Kasner vermelho), que de tão “comunistón”, moveu-se de Hamburg com toda a família para a Alemanha Oriental. Angela Kasner cresceu, graduou-se em física na Karl-Marx Universität, casou-se e se tornou Angela Merkel, senhora dos mercados, do capital financeiro, e cabeça do maior partido político de toda Bundesrepublik. Frau Merkel parece não haver escutado nada que o pai falou.
Outro figurão é o senhor vice-chanceler e Aussenminister – equivalente ao nosso Ministro das Relações Exteriores – Guido Westerwelle. Assumidamente gay, Herr Westerwelle, no primeiro dia no cargo, deu um peitaço nos Estados Unidos enviando uma carta que exigia a retirada de todas as armas atômicas estadunidenses estacionadas em santo solo germânico. Seria um disparate dizer que o chefe do Freie Demokratische Partei (FDP), partido identificado como “Os Amarelos”, é o equivalente ao nosso finado Clodovil, que ao meu entender, foi levado à Câmara dos Deputados como uma escolha de protesto. Absolutamente não. Guido Westerwelle goza de total respeito e confiança em seu trabalho por parte dos cidadãos alemães, o que lhe garante integridade física e moral para circular com o seu par romântico. É interessante ressaltar que o FDP é um partido totalmente direitista, ou seja, liberal somente no campo econômico. Portanto, Westerwelle não provém do “Partido das Loucas” ou qualquer agremiação que luta pelos direitos dos homossexuais, isto não está sequer em questão. O ministro construiu sua imagem política baseada tão e somente na plataforma liberal privatizadora, em torno da qual conquistou seu eleitorado. Para completar, o ministro fez uma gira pelo Oriente Próximo e visitou o Irã, um país não muito amigável aos homossexuais, cujo presidente afirma com os pés juntos que o seu país não sofre desta degradante enfermidade ocidental. Alguns piadistas brasileiros pensariam que “credo, um ministro viado ao lado do Ahmadinedjad, tá maluco, vai ser apedrejado”. Capaz. Ninguém sai dando pedradas em homossexuais ricos. Westerwelle voltou ileso pra casa.    
A terceira personalidade é o recém abdicado da cadeira de Ministro da Defesa Senhor Karl Theodor Maria Nikolaus Johann Jacob Philipp Franz Joseph Sylvester Freiherr  von und zu Guttenberg. Descendente da nobreza franconesa do norte da Bavária, zu Guttenberg teve que retirar-se de seu birô do governo Merkel devido a um escândalo de plágio, onde o “Doktor” zu Guttenberg parece não haver sido totalmente íntegro nas citações de nota de rodapé em sua tese de Doutorado. Resulta que além do cargo, perdeu também o título de doutor. A queda do ministro da defesa causou relevante comoção por parte dos alemães, que além de dedicado e eficiente, tinham-no adrede como querido e simpático. Entretanto, as interpretações do dolo alemão para com o jovem ministro vão mais além. Zu Guttenberg, além de ser um nobre (o que os seus doze nomes comprovam), é casado com a Duquesa von Bismarck-Schönhausen, ou Stephanie von und zu Guttenberg. “Stephi” é nada mais nada menos do que tataraneta do ex-chanceler Otto von Bismarck. Mais do que ser parente do senhor de capacete com ponteira (Pickelhaube) que unificou o país, Stephanie é também uma nobre. Supõe-se que no fundo do profundo da racionalidade alemã, os cidadãos escorregaram no sabão do desejo de ver ressurgir a perdida corte germânica, com todas suas tramas, conluios e charme. Sobretudo porque até antes do Skandal do plágio, Karl Theodor zu Guttenberg era cotado como o potencial e provável substituto da chanceler Angela Merkel. Mas a plebe acabou perdendo seu rei devido às notas de rodapé, e o reino acabou tomando outro destino.
As catástrofes de Fukushima redirecionaram o pensamento político nacional. Protestos ao longo do país exigem a desativação das usinas nucleares em funcionamento no país, e eventual substituição por energias limpas. Os alemães estão cansados das patetices nucleares e já deram uma resposta rápida nas últimas eleições para “governador” do “Estado” de Baden-Vurtemberga, elegendo Die Grünen (Os Verdes) para encabeçar o novo governo. Essa é uma mudança drástica no Land de Baden-Vurtemberga, a região sulista que apresenta as melhores condições financeiras de toda a República, comandado desde os anos cinqüenta pelos conservadores de Frau Merkel. De pronto, os potros viraram sua cabeça, e alçaram ao poder pela primeira vez em sua história Os Verdes, requisitando que a cartilha ecológica seja por fim posta em prática. Está claro que o “efeito Fukushima” teve impacto marcante neste pleito eleitoral. Além do mais, o GAU de Chernobyl em 1986 marcou na paleta os alemães, que se banharam da chuva radioativa trazida pelas nuvens da Ucrânia, e lhes apavora a ideia de passar pelo mesmo novamente. Aqui também não cabem comparações com o Partido Verde brasileiro, cuja chapa foi formada por uma ecorreligiosa que usa batom de beterraba e um empresário vendedor de cosméticos. Também não digo que Os Verdes alemães são melhores coisa e tal. Diria apenas, que as fronteiras da globalização parecem ser ainda menores em outras partes do globo, e que a internacionalização permitiu que o tema da discussão nuclear viesse a cair à mesa do eleitor germânico, que não perdeu tempo ao optar por mudanças. Mas são análises superficiais. No fim, o cartaz inicial do SPD se encontra mais do que ultrapassado. Hoje, todos falam do tempo (clima).