segunda-feira, 11 de abril de 2011

Oranje

No mercado público de Leiden, um senhor observa o peixe que repousa, cru, na tendinha de frutos do mar. Toma-o pela barbatana, afoga-o com vontade em um pote com molho de cebolas, alça o braço, e como um engolidor de espadas, mergulha o peixe inteiro, na vertical,  no poço da garganta. Nas vielas e também sobre as pequenas pontes que conectam os inúmeros canais, circula um enxame de bicicletas, veículo sacro, dos mais variados tipos, a maioria ao estilo “Jaiminho, o carteiro”, equipadas não só com cestinhas, mas também com caixotes enormes, capazes de transportar compras, animais, e as crianças alaranjadas nativas da região. Ademais das tulipas, cujos bulbos alimentaram o povo faminto durante a segunda grande guerra, o visitante tem que segurar o chapéu, porque esta terra que fica abaixo do nível do mar não possui nenhum Colosso do Ceará nem montanhas, e o vento te tapeia a cara sem cessar. Mas a ventania irritante também pode ser aproveitada, como no caso dos moinhos, que do grão do trigo fazem a farinha pra vó fazer cuca pra toda a gurizada.
Dentre os países do espaço Schengen, e de todo o mundo ocidental (que é onde cabe esse tipo de comparação), a Holanda, devido a seus conceitos morais e políticos, se diferencia substancialmente. Além da comercialização legal de drogas leves, os holandeses foram os primeiros a levantar as demais bandeiras liberais, tais quais a do casamento entre homossexuais, o aborto, a eutanásia, e talvez a mais interessante, a da formulação de um código de lei que regulariza o direito das trabalhadoras e trabalhadores do sexo. A legalização e conseqüente formulação do “direito das prostitutas” puseram, por assim dizer, ordem no meretrício. Prostíbulos sempre houve, mas após a queda do muro de Berlim, o tráfico de mulheres oriundas majoritariamente do leste europeu aumentou de maneira significante, ao ponto em que as autoridades tiveram que tomar alguma atitude. Então, o governo assinalou alguns pontos das cidades onde os serviços da carne seriam permitidos, e os batizou de redlight district.Os distritos da luz vermelha, como o De Wallen, em Amsterdam, são uma atração à parte. As damas, que agora são trabalhadoras autônomas (a legalização eliminou com relativo sucesso o “cafetão”), alugam janelas para expor-se aos clientes. São prédios com janelas emparelhadas lado a lado, às vezes até o terceiro andar. A disposição das janelas lembra um pouco o antigo “jogo da velha” do Domingão do Faustão, só que com as tias coqueteando com os transeuntes, com o indicador em forma anzol, chamando “vem cá”. É como uma vitrine de manequins vivos.
Os dutch, mais do que liberais avançados, são extremos capitalistas, loucos por dinheiro. Eles pensam mais ou menos assim: Bem, desde que não incomodes ninguém, tu podes fumar teu bequezinho, haxixe, cogumelos mágicos e também desfrutar do calor das senhoras, e se o Estado ainda lucra com tudo isso, perfeito! Os holandeses se acham muito cool, porque enquanto outros países ainda patinam sobre estes temas controversos, pra eles já é fonte de lucro, a exemplo das meretrizes, que pagam seus impostos engordando o caixa da rainha, e se aposentarão como prostitutas amparadas pelo sistema.     
Sem dúvida, o “desapego” religioso joga um rol definitivo na aceitação dessas políticas liberais por parte dos cidadãos. Entre os holandeses, apenas um terço acredita em deus. Outro terço crê que alguma força ou entidade espiritual rege o planeta. A última terça parte se declara completamente ateia. No meu último dia de passeio, fomos convidados para comer um gulash na casa de alguns conhecidos. Bem, nos dirigimos ao domicílio, até que para a minha surpresa nos vimos golpeando a porta de uma igreja. Fomos recebidos, entramos pela “sacristia”, subimos um lance de escadas e nos deparamos com um aconchegante apartamento. O que passa é que as igrejas tradicionais perdem ano a ano sua membresia, e ao esvaziarem-se acabam alugando as boas estruturas eclesiásticas, transformando-as em morada, biblioteca, jardim de infância, ginásio de esportes ou pista de baile. Acho bom que a igreja não vire morada dos morcegos, afinal de contas, se ninguém mais precisa dela, que façam utilidade dela para algo. Ao mesmo tempo, é estranho que o mesmo templo que já foi de muitos, agora é lar de alguns poucos. O mundo é um moinho mesmo seu Cartola. Naquela noite, a igreja abrigou finalmente uma ceia nos moldes originais.  

Um comentário:

  1. Esse tipo de mentalidade jamais funcionaria no Brasil, um pais cheio de preconceitos.
    Peixe cru acebolado... ECA!

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