quinta-feira, 17 de março de 2011

Eu tenho três pelos no peito, eu sou um urso.

Alaaf! Grita um alemão entorpecido nas ruas de Bonn. O bardo anuncia o carnaval na Renânia, e conclama a tropa para avançar sobre a bebida. A festa já começa de manhã cedinho. Levantamos às oito, nos fantasiamos, tomamos Frühstück, e começamos a beber. No carnaval todo mundo vai fantasiado, como aquelas festas de “Mangá”, tem de tudo. A Mareike se vestiu de joaninha, com anteninhas e vestido de bolinhas; O Tim era um grego (ou romano), com capa branca e louro na cabeça; o Gottfried uma mancha de tinta colorida. Eu era Pancho Villa, caudilho de Chihuahua, que além de ter um bigode muito legal e de ter se casado “legalmente” apenas setenta e cinco vezes, liderou a divisão do norte na Revolução Mexicana no empenho por tierra y libertad. Em Bonn, Pancho Villa comandou a abertura sem cessar de garrafas com conteúdo alcoólico e libertário. Com o cinturão de munições em cruz no peito peludo, com cara de cactus, usei o cabo da minha pistola para abrir as garrafas de todos os confederados, um verdadeiro líder.
Carregávamos vodka em garrafinhas de cem mililitros, o que eles chamam de Klopfer, presas a cordinhas amarradas no pescoço. A cada pouco, agarrávamos as garrafinhas, e batíamo-las umas contra as outras, tampa a tampa. As tampinhas eram sacadas, prendíamos o gargalo entre os dentes, e lançávamos a cabeça ao alto, como lobos uivantes, para que o veneno escorregasse tranquilamente goela abaixo. Oh mai, oh mai, Pancho Villa já soltava o sorriso e começava a cantar...
“Eu tenho três pêlos no peito, eu sou um urso. Eu os conto todo dia, mas não nasce mais nenhum. Não há urso como eu no mundo animal, você pode se “aninhar” com um urso, porque o urso é muito fofo. Se você provou uma vez, quer sempre mais. Eu tenho três pelos no peito, eu sou um urso”.

 Nosso bando se deslocou para assistir o desfile. Uma multidão serpenteava as ruas a fim de vislumbrar os carros alegóricos. Havia algumas escolas de samba, ou algumas baterias, mas o grosso do desfile era formado por carros de variadas representações da cidade, como os bombeiros, a polícia, a prefeitura, etc. Para a alegria dos lombriguentos, doçuras eram arremessadas à multidão. Para que tu também recebas, deves gritar “Kamelle”, e se abaixar, porque podem acertar uma bala no teu sombrero. Havia alguns canhões, de verdade, que faziam um estrondo assustador. Porém, estavam carregados apenas com confetes. No fim, um tiroteio de gostosuras.
Bueno, a festa de carnaval seguiu como qualquer outra. Trago e trago. Todo mundo procurando arbusto para mijar, e uma tremenda função para sacar o membro em meio a toda aquela fantasia. Para mim não havia problema, era só levantar a guaiaca. Já o monge que se aliviava ao lado, tinha que levantar a bata e prendê-la nos dentes. Sabe como é essa gente do presbitério, qualquer mijadinha no talar e já saem falando pra deus e o mundo.
E seguia a música... até meio luterana...salvos por graça e fé.

“O amado deus sabe que eu não sou um anjo, todos têm um pequeno diabo dentro de si. O amado deus sabe que eu não sou um anjo, mesmo assim, todos iremos para o céu.”

O carnaval é bom para Bonn, alegra a cidade. Com o regresso da capital nacional a Berlin, logo após a reunificação alemã no início dos anos noventa, a cidade se tornou uma espécie de cemitério político. O antigo Bundestag, às margens do Reno, hoje está adormecido, silencioso. Algumas pessoas de Bonn recordam com saudade os tempos de agitação política e recepções diplomáticas que movimentavam a cidade naqueles anos agitados pré-tombamento da cortina de ferro. Para preencher o vazio deixado pelo deslocamento de toda aparelhagem burocrática a Berlin, alguns órgãos governamentais e internacionais foram realocados em Bonn, como algumas secretarias da ONU, a rede de TV estatal Deutsche Welle, o Deutsche Post, etc. Seis ministérios da república permaneceram em Bonn.

Voltando à festa, ao momento em que todos nos abraçávamos e nos queríamos, naquela borracheira medonha, uma miragem no deserto da Baja Califórnia. Com a testa brilhando mais do que o ouro roubado de Montezuma, do meio do Volk brota um gremista. Camisa retrô, tri. “E aí cara, de onde tu vens?”, perguntei. E o belo moço, duro de fanta, não conseguiu articular nenhuma resposta. “De onde tu tens essa camisa”? O gremista insinuou um movimento de mandíbula, mas não tinha jeito, a boca parecia costurada. Talvez ele estivesse somente assustado, afinal de contas, ele estava tetê-à-tête a nada mais nada menos do que Pancho Villa, o temerário. Pousei a mão sobre a pistola, agarrei-o pelo pano tricolor e arrematei: “habla!”. “Ok, ok, eu vou falar, eu vou falar”, disse ele. “Meu pai era jogador da seleção polonesa em 1982, 1986, ok?” “Mas e a camisa do Grêmio?”, retruquei. “Polônia, 1982,1986”, insistiu o gremista. Bom, a esta altura do fandango, poderíamos considerar aceitável esse diálogo alucinado. Afinal de contas, os polacos são estranhos e asquerosos, a gente sabe desde os tempos papais. Junta o bando, chama a comitiva, façam a foto. Alaaf!