quarta-feira, 18 de maio de 2011

Um republicano em minha casa.


Sábado pela noite o reverendo me pediu para armar o despertador para as quatro e meia da madrugada, pois às cinco teria que recolher na estação de trem um pastor estadunidense que estava por chegar. Já vínhamos albergando desde o dia anterior o bispo da igreja luterana na Ucrânia, um senhor amigável e decente, ao qual o reverendo cedeu sua cama, para então dormir no colchão da sala. Numa tertúlia agradável com o bispo, derrubamos uma garrafa de vinho da Moldávia e fomos dormir, pois o domingo seria longo, de celebração dos cem anos da comunidade luterana de Kharkov.
Às seis e meia da manhã levanto de susto, invado a sala, e me acerco ao reverendo que ainda dormitava: “velho, velho, acorda! O gringo, tem que ir buscar o gringo!” Ele permanece imóvel, deitado de lado sobre o colchão estendido no chão. Nervoso, tento ser mais efetivo no despertar e lhe disparo automaticamente três tapas de china na careca: “Velho, levanta, o gringo!”. Hey, hey, what, what! Diz o senhor que se despertava, tomado pelo pavor, talvez pela minha cordialidade. I´m Donald, Who are you ? me pergunta cheio de espanto. Agacho-me e aproximo minha cabeça até a sua, que permanecia recostada, e nos miramos pelo avesso. “Puta que pariu, desculpe, sorry, izvinite”, lhe disse. Eu não levava postas as lentes, fui traído pelos três graus de miopia que carrego. O reverendo, que já havia cedido sua cama ao bispo, também fornecera o colchão da sala para que pastor repousasse.
Nesse zoológico eclesiástico armado no fim de semana, o Donald se destacou. Ainda rapazito, foi milico destacado na zona estadunidense na Bavária, Alemanha. “Nossa tarefa era proteger a fronteira com a República Tcheca”, contou. Ele dirigia um caminhão para transporte de efetivos, da marca Rio. Nos anos setenta, Don foi pastor na casa do estudante, em Porto Alegre, onde lhe apelidaram de Tio Patinhas. Ele contou que foi um tempo muito difícil, porque os estudantes eram muito esquerdistas, marxistas. Hoje, este senhor da Dakota do Norte, é o responsável pelas “missões” estadunidenses na Europa do leste, antigo território “ateu”. Ouvir o Tio Patinhas falar é como ouvir qualquer político dos Estados Unidos discursando no âmbito internacional. É um grande sermão. Eles possuem as respostas exatas para todos os problemas do planeta. E todas suas argumentações são legitimadas pelos sucessos do país. Para o Don, a URSS deveria ser combatida, sobretudo porque era um Estado ateu: “estas pessoas se apartaram de deus, por isso ficaram pobres”. Argumentei que as pessoas aqui são extremamente religiosas, e que deveria tomar cuidado para não confundir a ideologia comunista com a religiosidade das pessoas. Mas ele não sabe escutar, é como falar com um peixe. Ele abomina o projeto dos democratas que visa sacar dos bilhetes de dólar a escrita “in God we trust”. Não tem a menor ideia de quem seja o Neil Young, pediu água mineral pra escovar sua dentadura branco-hóstia e andou de cueca (uma big cueca) desfilando seu traseiro imperialista pela casa. Eu conheci uma penca de pessoas deste país, e muitos são assim. Creem que são emissários de deus, anjos-cruzados enviados para propagar a verdade, a sua verdade. Os meios não importam. O reverendo e eu tratamos de manter a calma, embora quiséssemos enfiar-lhe um talar goela abaixo. Somos brasileiros tranqüilos, babacas simpáticos, capazes de sorrir pra qualquer filho da puta.
Por fim, o Don contou que o departamento de defesa estadunidense havia instalado nos anos setenta um míssel nuclear no sítio do seu irmão, em Dakota. Coberto com uma enorme tampa de concreto, este míssel  estava pronto para ser lançado sobre os soviéticos ateus quando necessário.
Ontem, em sua derradeira noite conosco, ele fixou atenção num dos meus livros, uma espécie de enciclopédia sobre a antiga maquinaria de guerra soviética. Tomou-la, e tendo dado graças dirigiu-se ao catre sobre qual descansava sua Holy Bible. Assim passou a noite, com suas duas leituras de cabeceira.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

O Dia da Vitória.

“Germania kapitulatzia”! Vibram os alto-falantes distribuídos ao longo da avenida central de Kiev, anunciando que as forças alemãs finalmente capitularam. O povo responde com “urras”, e tem início neste nove de maio a celebração do 66º “Dia da Vitória”, a grande festa pátria de comemoração da caída da Alemanha nazista frente às forças soviéticas.
A festa teve partida com o desfile de alguns batalhões em trajes e veículos militares do tempo da segunda guerra. Tanques, caminhões, jipes e alguns canhões móveis eram grande atração para alguns aficionados. Um grupo de belas enfermeiras ucranianas – o sonho de todo soldado ferido - em trajes antigos desconfortavam a outra leva de aficionados. “Me interna, me interna!”, gritava o rapaz ao lado.
Sobre uma caminhonete de carga, dançavam dois pares ao som de um gaiteiro que se recostava sentado no fundo da carroceria. No chão, um grupo de jovens milicos se alternava para empurrar a velha máquina, palco ambulante que havia enguiçado, e que seguia no ponto-morto. Bonita cena.
Neste dias de festa, saem às ruas muitos veteranos de guerra. Vestem seus trajes honorários, e no peito carregam suas medalhas ou condecorações. Não são poucas, dificilmente menos de quarenta peças. Tradicionalmente, jovens e crianças lhes regalam flores, e dizem spasiba balshoi, um muito obrigado carregado de respeito e admiração. Outros pedem para ser fotografados com eles, na sua maioria mocinhas saltitantes. Estes senhores octagenários são os heróis da pátria, os que arriscaram o pelego naquela carnificina que tomou a vida de vinte e sete milhões de soviéticos, os que lutaram bravamente e ofereceram sua vida pela liberdade de todo o povo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.  
Mais ao oeste do país, na cidade de L´vov, capital dos nacionalistas ucranianos, sua população celebra o nove de maio de uma maneira diferente. Para eles, este é um tempo para recordar não só os massacres causados pela Alemanha nazista, como também o totalitarismo comunista da ex-URSS, colocando assim, ambos os regimes no mesmo plano. No entanto, os ânimos populares vêm se acirrando gradativamente. No último dia nove em L´vov, jovens mascarados cercaram alguns veteranos de guerra aos gritos de “fora moscovitas”, e lhes arrancaram as medalhas do peito. Para os ucranianos pró-rússia esse “ataque aos heróis da pátria” foi um tremendo disparate. Acontece que os ucranianos nativos – de origem e língua – foram duramente sufocados pelo regime soviético, principalmente por Stálin, e consideram as comemorações da Pabieda (Dia da Vitória) um deplorável culto de louvor à Rússia.
Admito que não vejo muito o que celebrar por aqui. Aparte das importâncias individuais na experiência da guerra, hoje, enquanto a derrotada Alemanha manda e desmanda na União Europeia, a Ucrânia vencedora está de joelhos à corrupção, à máfia, e à bondade dos senhores da Gazprom. Creio que o pleito da questão da identidade local vai se definindo em torno do sucesso econômico. Tivesse a Ucrânia independente alcançado um bom desenvolvimento econômico, os confrontos seguramente amainar-se-iam. Mas o fato é que desde a independência em 1991, a situação só tem piorado. E consequentemente, a simples análise que o povo faz é a de que “nos tempos da URSS as coisas estavam melhores”. E como as pessoas dificilmente conseguem analisar a história “más allá” do seu umbigo, olvida-se dos massacres, deportações e demais crimes à humanidade exercidos pelo regime estalinista contra as minorias étnicas.
Em Kiev, observei uma marcha pacífica que clamava pelo retorno do comunismo à Ucrânia. Eram umas três mil pessoas, e me impressionou a quantidade de jovens presentes. Em especial minha atenção se fixou numa moça que carregava um quadro de Joseph Stalin com o cuidado de quem transporta um ícone ortodoxo. Ele é o símbolo da vitória.
Do outro lado da rua ronca um motor possante, com rodas grandes e lataria brilhante. Um cidadão dá uma cavalo-de-pau montado no seu Porsche, provocando e assustando os manifestantes. Ele vocifera: “comam merda proletários. Vejam o que o mercado livre me deu!”

domingo, 1 de maio de 2011

Os espíritos da Crimeia.


Fiz amizade com um camarada de sessenta e quatro anos chamado Anatoly. Por uns míseros mangos, fiz-lo meu professor de história, um bom professor. Quando ainda gurizote, recém chegado da Rússia, seu país de origem, Anatoly foi recebido na Ucrânia com uma honorável pedrada na cabeça pelos garotos ucranianos do bairro. As crianças aqui não brincam de “polícia e ladrão”, ou “mocinho e bandido”. Eles brincam de matar alemães, russos ou polacos. “Gitler Umer”, ainda gritam alguns. Hitler está morto.
Quando nos encontramos, o Anatoly faceiramente me cumprimenta com um “Hey Filia!”, e me dispara uma bofetada lateral no braço esquerdo. Essa era a saudação dos pára-quedistas soviéticos, que foi a divisão onde ele serviu nos anos setenta. Pergunto-lhe porque me chama de “filha”. Ele me diz que como todo Nikolai é chamado de Kolia, Dimitri de Dima, Aleksander ou Aleksandra de Sasha, aqui, todo “Filip” é Filia. Apelido carinhoso. Expliquei-lhe do quão feminino isso me parecia, e que se ele continuava a me chamar assim, passaria a chamar-lhe de Ana. Desaprovando a ideia, ele disse que “não, não Filia, eu sou um homem velho, tu não podes chamar-me assim”.
O pai do Anatoly foi carpinteiro oficial da residência de verão de Stálin em Sochi. Ele recorda de certa vez na sua infância, nos anos quarenta, enquanto brincava ao redor dos afazeres do pai, que um senhor sisudo de bigode viera buscar por alguém “competente” que lograsse consertar sua bengala rota. Ele conta que logo depois que seu pai tomara o serviço e o senhor de bigode já se havia ido, de pronto, uma alcateia de doze homens grandes e fortes surgiram de trás das árvores e cercaram o seu pai. Eles vestiam negro, recorda, eram da segurança do senhor da bengala. Quem é você? O que faz aqui? Intimaram os homens de negro. “Eu sou carpinteiro, e tratarei de consertar com competência a bengala do nosso líder Stalin!”, respondeu. Satisfeitos com a resposta, os homens da segurança se foram.
Quando lhe contei que iria conhecer a Crimeia, ele me disse que “sim, Filia, é um lugar muito lindo, mas com uma atmosfera pesada. Muitas batalhas foram travadas sobre aquele chão, e grande parte dos combatentes que lá morreram nunca foram enterrados, e por isso, suas almas vagam errantes sobre a península. Nunca encontraram a paz.”
Gregos, genoveses, tártaros, cossacos, turco-otomanos, russos, todos se empenharam na conquista da Crimeia. De fato, a historiografia de guerras é farta. Afinal de contas estamos na Europa, eles sempre hão tratado de fazer dos humanos carne de canhão. Fazem guerra com a mesma facilidade com que a gente faz um churrasquinho. No que tange aos fatos mais recentes, a Crimeia, mais precisamente a cidade de Ialta, plantada no sul da península, fez-se famosa pelo famoso encontro dos “três grandes”, Winston Churchill, Franklin Roosevelt (que já tava meia-bomba, em cadeira de rodas) e Joseph Stalin no requinte do Livadia Palace em 1945. Lá, os três anciãos e suas respectivas comitivas repartiram a Alemanha na Sala de Bilhar, e dividiram o mundo na Sala da Lareira.
Ainda mais recente são os acontecimentos envolvendo a cidade portuária de Sevastopol. Em uma das cavernas submarinas em Sevastopol, às margens do Mar Negro, os soviéticos mantiveram uma fábrica secreta de submarinos nucleares. As pessoas da Crimeia dizem que essas cavernas marinhas se abrem e se fecham mecanicamente, “como nos filmes do James Bond”. Duvidoso, não posso comprovar. Bem, hoje Sevastopol recebe apenas os iates dos milionários russos. Ano passado o parlamento ucraniano prolongou o contrato que permite com que a frota russa se mantenha estacionada no porto de Sevastopol até 2017. Em troca disso, Moscou jurou manter as torneirinhas do gás aberta, permitindo que os velhinhos e brasileiros não virem picolé proletário.
O que Cuba é para os Estados Unidos, a Crimeia é para a Rússia. Esta península é o que há de mais bonito aqui na região, com natureza interessante, belas praias, clima mais ameno, mulheres atraentes. Tanto os russos como os estadunidenses relutam em aceitar a perda dos seus antigos cassinos.
Logo que voltei da Crimeia, estava ansioso para encontrar o Anatoly e contar-lhe das cócegas que os epíritos errantes da Crimeia andaram fazendo no meu sovaco. Nos vimos rapidamente, ocasião na qual ele me entregou nervosamente uma carta. Em atitude desesperada, o Ana me pede ajuda para conduzi-lo pra fora da Ucrânia. Ele quer abandonar o país.
O Anatoly é apenas um entre os muitos velhotes que pertencem aos 70% enquadrados na casta da linha de pobreza ucraniana. Um velhote inteligente, que fala quatro línguas, ativo, mas que sucumbe abraçado às estruturas do país. A geração da Guerra Fria, que se preparou pra hecatombe que não aconteceu. A geração da ideologia, que de repente deixou de existir, e agora tratam de tentar entender esse negócio economia de mercado.
Admiro a iniciativa do Anatoly, 64 no lombo e metendo calandro. Assim com também louvo o Nikolai “fumaça”, o Vassily “mecânico de tanques” e tantos outros que fazem valer cada centavo que conquistam (e às vezes cada gole de vodka). Disse um uruguaio, as pulgas ainda sonham em comprar um cachorro.