Sábado pela noite o reverendo me pediu para armar o despertador para as quatro e meia da madrugada, pois às cinco teria que recolher na estação de trem um pastor estadunidense que estava por chegar. Já vínhamos albergando desde o dia anterior o bispo da igreja luterana na Ucrânia, um senhor amigável e decente, ao qual o reverendo cedeu sua cama, para então dormir no colchão da sala. Numa tertúlia agradável com o bispo, derrubamos uma garrafa de vinho da Moldávia e fomos dormir, pois o domingo seria longo, de celebração dos cem anos da comunidade luterana de Kharkov.
Às seis e meia da manhã levanto de susto, invado a sala, e me acerco ao reverendo que ainda dormitava: “velho, velho, acorda! O gringo, tem que ir buscar o gringo!” Ele permanece imóvel, deitado de lado sobre o colchão estendido no chão. Nervoso, tento ser mais efetivo no despertar e lhe disparo automaticamente três tapas de china na careca: “Velho, levanta, o gringo!”. Hey, hey, what, what! Diz o senhor que se despertava, tomado pelo pavor, talvez pela minha cordialidade. I´m Donald, Who are you ? me pergunta cheio de espanto. Agacho-me e aproximo minha cabeça até a sua, que permanecia recostada, e nos miramos pelo avesso. “Puta que pariu, desculpe, sorry, izvinite”, lhe disse. Eu não levava postas as lentes, fui traído pelos três graus de miopia que carrego. O reverendo, que já havia cedido sua cama ao bispo, também fornecera o colchão da sala para que pastor repousasse.
Nesse zoológico eclesiástico armado no fim de semana, o Donald se destacou. Ainda rapazito, foi milico destacado na zona estadunidense na Bavária, Alemanha. “Nossa tarefa era proteger a fronteira com a República Tcheca”, contou. Ele dirigia um caminhão para transporte de efetivos, da marca Rio. Nos anos setenta, Don foi pastor na casa do estudante, em Porto Alegre, onde lhe apelidaram de Tio Patinhas. Ele contou que foi um tempo muito difícil, porque os estudantes eram muito esquerdistas, marxistas. Hoje, este senhor da Dakota do Norte, é o responsável pelas “missões” estadunidenses na Europa do leste, antigo território “ateu”. Ouvir o Tio Patinhas falar é como ouvir qualquer político dos Estados Unidos discursando no âmbito internacional. É um grande sermão. Eles possuem as respostas exatas para todos os problemas do planeta. E todas suas argumentações são legitimadas pelos sucessos do país. Para o Don, a URSS deveria ser combatida, sobretudo porque era um Estado ateu: “estas pessoas se apartaram de deus, por isso ficaram pobres”. Argumentei que as pessoas aqui são extremamente religiosas, e que deveria tomar cuidado para não confundir a ideologia comunista com a religiosidade das pessoas. Mas ele não sabe escutar, é como falar com um peixe. Ele abomina o projeto dos democratas que visa sacar dos bilhetes de dólar a escrita “in God we trust”. Não tem a menor ideia de quem seja o Neil Young, pediu água mineral pra escovar sua dentadura branco-hóstia e andou de cueca (uma big cueca) desfilando seu traseiro imperialista pela casa. Eu conheci uma penca de pessoas deste país, e muitos são assim. Creem que são emissários de deus, anjos-cruzados enviados para propagar a verdade, a sua verdade. Os meios não importam. O reverendo e eu tratamos de manter a calma, embora quiséssemos enfiar-lhe um talar goela abaixo. Somos brasileiros tranqüilos, babacas simpáticos, capazes de sorrir pra qualquer filho da puta.
Por fim, o Don contou que o departamento de defesa estadunidense havia instalado nos anos setenta um míssel nuclear no sítio do seu irmão, em Dakota. Coberto com uma enorme tampa de concreto, este míssel estava pronto para ser lançado sobre os soviéticos ateus quando necessário.
Ontem, em sua derradeira noite conosco, ele fixou atenção num dos meus livros, uma espécie de enciclopédia sobre a antiga maquinaria de guerra soviética. Tomou-la, e tendo dado graças dirigiu-se ao catre sobre qual descansava sua Holy Bible. Assim passou a noite, com suas duas leituras de cabeceira.