domingo, 1 de maio de 2011

Os espíritos da Crimeia.


Fiz amizade com um camarada de sessenta e quatro anos chamado Anatoly. Por uns míseros mangos, fiz-lo meu professor de história, um bom professor. Quando ainda gurizote, recém chegado da Rússia, seu país de origem, Anatoly foi recebido na Ucrânia com uma honorável pedrada na cabeça pelos garotos ucranianos do bairro. As crianças aqui não brincam de “polícia e ladrão”, ou “mocinho e bandido”. Eles brincam de matar alemães, russos ou polacos. “Gitler Umer”, ainda gritam alguns. Hitler está morto.
Quando nos encontramos, o Anatoly faceiramente me cumprimenta com um “Hey Filia!”, e me dispara uma bofetada lateral no braço esquerdo. Essa era a saudação dos pára-quedistas soviéticos, que foi a divisão onde ele serviu nos anos setenta. Pergunto-lhe porque me chama de “filha”. Ele me diz que como todo Nikolai é chamado de Kolia, Dimitri de Dima, Aleksander ou Aleksandra de Sasha, aqui, todo “Filip” é Filia. Apelido carinhoso. Expliquei-lhe do quão feminino isso me parecia, e que se ele continuava a me chamar assim, passaria a chamar-lhe de Ana. Desaprovando a ideia, ele disse que “não, não Filia, eu sou um homem velho, tu não podes chamar-me assim”.
O pai do Anatoly foi carpinteiro oficial da residência de verão de Stálin em Sochi. Ele recorda de certa vez na sua infância, nos anos quarenta, enquanto brincava ao redor dos afazeres do pai, que um senhor sisudo de bigode viera buscar por alguém “competente” que lograsse consertar sua bengala rota. Ele conta que logo depois que seu pai tomara o serviço e o senhor de bigode já se havia ido, de pronto, uma alcateia de doze homens grandes e fortes surgiram de trás das árvores e cercaram o seu pai. Eles vestiam negro, recorda, eram da segurança do senhor da bengala. Quem é você? O que faz aqui? Intimaram os homens de negro. “Eu sou carpinteiro, e tratarei de consertar com competência a bengala do nosso líder Stalin!”, respondeu. Satisfeitos com a resposta, os homens da segurança se foram.
Quando lhe contei que iria conhecer a Crimeia, ele me disse que “sim, Filia, é um lugar muito lindo, mas com uma atmosfera pesada. Muitas batalhas foram travadas sobre aquele chão, e grande parte dos combatentes que lá morreram nunca foram enterrados, e por isso, suas almas vagam errantes sobre a península. Nunca encontraram a paz.”
Gregos, genoveses, tártaros, cossacos, turco-otomanos, russos, todos se empenharam na conquista da Crimeia. De fato, a historiografia de guerras é farta. Afinal de contas estamos na Europa, eles sempre hão tratado de fazer dos humanos carne de canhão. Fazem guerra com a mesma facilidade com que a gente faz um churrasquinho. No que tange aos fatos mais recentes, a Crimeia, mais precisamente a cidade de Ialta, plantada no sul da península, fez-se famosa pelo famoso encontro dos “três grandes”, Winston Churchill, Franklin Roosevelt (que já tava meia-bomba, em cadeira de rodas) e Joseph Stalin no requinte do Livadia Palace em 1945. Lá, os três anciãos e suas respectivas comitivas repartiram a Alemanha na Sala de Bilhar, e dividiram o mundo na Sala da Lareira.
Ainda mais recente são os acontecimentos envolvendo a cidade portuária de Sevastopol. Em uma das cavernas submarinas em Sevastopol, às margens do Mar Negro, os soviéticos mantiveram uma fábrica secreta de submarinos nucleares. As pessoas da Crimeia dizem que essas cavernas marinhas se abrem e se fecham mecanicamente, “como nos filmes do James Bond”. Duvidoso, não posso comprovar. Bem, hoje Sevastopol recebe apenas os iates dos milionários russos. Ano passado o parlamento ucraniano prolongou o contrato que permite com que a frota russa se mantenha estacionada no porto de Sevastopol até 2017. Em troca disso, Moscou jurou manter as torneirinhas do gás aberta, permitindo que os velhinhos e brasileiros não virem picolé proletário.
O que Cuba é para os Estados Unidos, a Crimeia é para a Rússia. Esta península é o que há de mais bonito aqui na região, com natureza interessante, belas praias, clima mais ameno, mulheres atraentes. Tanto os russos como os estadunidenses relutam em aceitar a perda dos seus antigos cassinos.
Logo que voltei da Crimeia, estava ansioso para encontrar o Anatoly e contar-lhe das cócegas que os epíritos errantes da Crimeia andaram fazendo no meu sovaco. Nos vimos rapidamente, ocasião na qual ele me entregou nervosamente uma carta. Em atitude desesperada, o Ana me pede ajuda para conduzi-lo pra fora da Ucrânia. Ele quer abandonar o país.
O Anatoly é apenas um entre os muitos velhotes que pertencem aos 70% enquadrados na casta da linha de pobreza ucraniana. Um velhote inteligente, que fala quatro línguas, ativo, mas que sucumbe abraçado às estruturas do país. A geração da Guerra Fria, que se preparou pra hecatombe que não aconteceu. A geração da ideologia, que de repente deixou de existir, e agora tratam de tentar entender esse negócio economia de mercado.
Admiro a iniciativa do Anatoly, 64 no lombo e metendo calandro. Assim com também louvo o Nikolai “fumaça”, o Vassily “mecânico de tanques” e tantos outros que fazem valer cada centavo que conquistam (e às vezes cada gole de vodka). Disse um uruguaio, as pulgas ainda sonham em comprar um cachorro.  


2 comentários: