segunda-feira, 20 de junho de 2011

Tu tens um Sputnik?


Na minha ida a Moscou acabei esquecendo meu livro no trem. É um bom livro, se chama “A short history of tractors in ukrainian”, onde a autora descreve o desenrolar de sua família ucraniana na Inglaterra, país onde migraram após a segunda guerra. Após a morte da mãe, seu pai de 84 anos, um engenheiro mecânico apaixonado por tratores, se casa com uma bela ucraniana de 40 anos, Valentina. Valentina se muda pra casa da família juntamente com o seu filho Estanislau, que é quando todos os problemas têm início. O livro retrata bem o choque cultural leste-oeste, e tem me ajudado a entender bastante o modus operandi dos ucranianos.
Pois bem, quero meu livro de volta, e para isso me dirijo ao balcão de Informatzia no intento de conseguir alguma informação do paradeiro dele. Duas moças simpáticas com computadores a tira-colo me atendem e dizem que ‘sim, um livro foi encontrado no trem de ontem que veio de Belgorod. ’ Ah, legal. ‘Mas ele já está encaminhado para voltar a Belgorod no trem das 22 horas. ’ Suka, eu também retornaria a Belgorod neste dia, só que no trem das 19 horas. E antes que o trem das 22 chegasse, eu já estaria de novo no trenzinho elétrico rumo a Kharkov, merda. E foi quando eu já dava meu kniga por perdido, que uma alma prestativa se pronunciou. Na verdade duas. ‘Eu vou nesse trem, posso pegar teu livro. ’ Ela é a Nadia, uma sessentona que ouviu toda a nossa conversa e se prontificava a recuperar o meu livro. ‘Ouvimos que tu moras em Kharkov, nós também somos de lá, apenas moramos em Kursk, na Rússia. No fim de semana o Michail, meu marido, vai pra Kharkov e pode levar teu livro’. É um casal humilde, nota-se facilmente pelas roupas de mais de 30 anos de uso e pela morbidez dos rostos. O Michail, que me mira atentamente, reduz os três passos que nos distanciavam: ‘Deve ser um livro importante’. ‘Da, da. Li mais da metade, quero a outra metade ainda.’ ‘Onde está a tua mulher? ‘, me pergunta. Nadia interrompe a perguntinha capciosa do marido e me pede que lhe escreva o número de telefone e nome do livro, em cirílico, porque não entende esse alfabeto latino.
Depois de nos despedirmos, dirijo a carcaça até a grande sala de espera. Ainda faltavam duas horas para a partida do trem, precisava descansar um pouco, a viagem seria longa, apertada e abafada. Mal me sento, e o Michail aparece de sopetão. Ele não joga a conversa fora, vai direto ao ponto. ‘Cadê tua mulher?` Argamassa, que bafo do Micha. Eles passam comendo peixinhos secos ao sal, daí o hálito horrendo de sopa de aquário. ‘Não tenho mulher, tenho apenas namorada. ’ ‘Horosho, mas não tá contigo aqui, né?’ ‘Niet.’ Me disse adeus e vazou finalmente. Dormito de leve, mas em menos de dez minutos, um odor forte, um extrato de cachalote desponta à minha esquerda. É o Micha que se tele-transportou e está sentadinho ao meu lado, com um grande sorriso dourado, o chamado boca-rica. E acontece o que eu já esperava. Ele saca um retrato do casaco. ‘Olha aqui, essa é a Tânia, minha filha, solteira. ’ Trato de valorizar um pouco a sua mercadoria. ‘Que bonita, parece que puxou pro senhor, o que ela faz?’ ‘Ela é musikantin em Dniepropetrovski (onde joga o Giuliano), já tem 28 anos e ainda é solteira. ’ Aqui se diz que 23 anos é a idade da mulher casar, e a família exerce relativa pressão para tal. Na Ucrânia não existe mulher solteira, todas têm namorado. Passam fazendo ponte de uma relação para outra, anulando aquele espaço inter-relacionamento que proporciona o (falso?) sentimento de “liberdade”. É uma vergonha estar sem o seu Sputnik, que em russo significa “o acompanhante”. As vaidosas soviéticas fundamentam sua preocupação: ‘Após os 23, a beleza começa a nos abandonar, e então não casamos com quem queremos, senão com o que sobra. ’ É o que dizem.   
Acredito que a Tânia não aprove que o seu pai saia por aí procurando arranjos concubinários. Ao mesmo tempo interpreto o Michail sobretudo como um pai aflito, que me visualizou como uma catapulta pra lançar sua filha pra fora da Ucrânia, como um satélite. A propaganda ocidental vendeu uma imagem distorcida ao leste, que diz que vida no oeste é fácil, “livre” e que se costuma ir às compras no mesmo passo que os ortodoxos vão à igreja. Se pudesse, eu abriria as portas do ocidente para que todos gozem de sua bonança. Agora, quem garante que a vida vai ser melhor lá ou acolá? A vida não sorri pra todos. Mesmo desaprovando seu método, agradeci ao Michail pela confiança em querer fazer negócio comigo. Apenas lhe sugeri que troque a foto de rosto da Tania por uma de corpo inteiro, para uma melhor análise do material.
Nunca recebi o livro de volta.    

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