sábado, 11 de junho de 2011

Lênin baila o Waka Waka.


Estamos todos na plataforma de embarque para tomar o trem que partiria às dez da noite, para alcançar Moscou às nove da manhã do dia seguinte. Faz muito calor em Belgorod. Nesta época, o sol se põe perto das onze horas da noite e nasce às quatro da madrugada. É um quentume bruto. Os homens estão grande parte sem camiseta, vestem bermudinha de Tac-tel em cores extravagantes e calçam chinelos estilo Rider oitenteiro. Todos fumam compulsivamente, como chineses. Os parlantes da estação de trem tocam marchinhas do pós-guerra, daquelas que enaltecem o valoroso e heroico povo russo. Faltando pouco para as dez da noite, a locomotiva encosta e se conecta ao comboio de vinte e cinco vagões. A comissária responsável pelo nosso vagão emitiu a ordem (mulheres eslavas emitem ordens como ninguém) de que largássemos os crivos e adentrássemos ao vagão. Cada vagão possui dez cabines interconectadas por um corredor que vai de ponta a ponta. Cada cabine abriga seis camas. Eu viajo na cama número um do primeiro vagão. Para minha sorte, minha cabine está composta apenas de fêmeas, que são seres que em teoria roncam e fedem menos. A locomotiva desloca o comboio finalmente. A comissária distribui as roupas de cama, e uma vez tendo o catre listo, todos se preparam uniformemente para o manjar da noite. Os eslavos do leste são pessoas extremamente econômicas, dificilmente compram um lanchinho em algum boteco. São farofeiros de pura cepa, trazem tudo de casa. De pronto começa a emergir de suas sacolinhas ovos, pães, linguiça. A senhora ao meu lado saca de sua bolsa uma penca de peixes defumados presos por um arame. A mistura de odores que se forma no interior do vagão é de uma hediondez inexplicável, uma flatulência sem fim causada por um suco de alho. Adrede múltiplos tragos de vodka, que é o combustível desse povo, e os seus conseqüentes arrotos, que pela carniça, mais bem são peidos pegando o elevador. Peço aos vizinhos que abram a janela por causa do bafo, mas todos rejeitam a proposta. O vento é frio, podem enfermar-se, dizem. Nauseado, estirei o corpo suado no catre superior e tratei de apagar. Estava extremamente irritado com o odor que emanava dessa gente e com a pequenez da cama, pois todos que passavam pelo corredor enroscavam a orelha nos meus dedos dos pés que ficavam pra fora. Aquilo não era um trem, mais bem um estábulo móvel.  
O comboio arribou na capital vermelha às nove em ponto. O Nikolaj, amigo do Guena, me recebeu na estação central. Submergimos no metrô e em dez minutos já estávamos vislumbrando a Praça Vermelha, que ao contrário do que parece, já carrega esse nome desde muito antes do bolchevismo. Ao fundo está igreja colorida de St. Vassily, mais à direita o Kremlin, que é a residência governamental, e no centro da Krasnaia Ploschad está o mausoléu onde repousa o corpo do camarada Lênin. Passamos os detectores de metais e nos dirigimos diretamente ao mausoléu. Uma alcateia de militares nos indica o caminho, e após descer alguns lances de escada topamos com uma sala escura, dando de frente com o grande líder. O tavarish Lênin morreu em 1924, teve seu corpo embalsamado e colocado então à visitação do público. O personagem mais importante do séc. XX, segundo Hobsbawm, é um sujeito retaco. Sua múmia repousa em um sarcófago de vidro alumiado por luzes vermelhas. Está proibido tomar fotos. Ele veste um terno negro, e um pano também negro lhe cobre até a cintura. Por baixo do paletó uma camisa branca, e no pescoço uma gravata azul-escuro com bolinhas brancas. Seus braços estão estirados sobre o pano negro, tendo o punho direito fechado, e o esquerdo aberto. Sua careca é lustrosa e as orelhas são muito diminutas. Vladimir Ilitch Lenin, uma “liderança”.
O Kolia (encuratamento de Nikolaj) é um ucraniano moreno da região mineira de Donetsk. O cara parece uma porta de igreja, devido ao seu tamanho. Trabalha na cidade mais cara do mundo como instrutor de academia (claro) e pratica luta Greco-romana. Ademais de guia, o Kolia me serve de segurança, o que é muito bom, “Moscou é uma cidade muito perigosa”. O cara é tão forte, que o pessoal na rua pede pra tirar foto com ele. Na cidade mais cara do mundo, Kolia trabalha sem documentos. Ele diz que fala com sotaque moscovita, e que ninguém pergunta a ele de sua origem. Talvez tenham apenas medo, por isso não perguntam. Encontramos o meu hostel, e nos despedimos.
No dia seguinte, depois de caminhar pela cidade, retornei à Praça Vermelha, onde o bacanal estava armado. Um cardume de jovens circulava pela praça celebrando o fim do ano letivo. Sobre um palco gigante apresentavam-se incontáveis grupos de dança e canto. Também havia pequenas oficinas de esportes variados e demais atividades, inclusive Paint-ball.  E no centro da praça, ao lado do mausoléu do Lênin, uma cancha de futebol, onde vermelhos contra brancos, bolcheviques e mencheviques, se digladiavam. Os vermelhos venceram, é óbvio. Mais ao fundo vejo que uma grande estrutura de metal está sendo montada, provavelmente para um grande concerto. Vou conferir e descubro que Shakira, a pimenta de Barranquilla, chacoalharia as cadeiras naquela noite, armando o surungo a uns setenta metros da tumba do líder.
A URSS não existe mais, porém, este passado se faz muito presente na sociedade russa atual. Em Moscou, tudo se desenvolve “sob os olhos” de Lênin, desde o Kremlin que fica às suas costas, até os jovens, que crescem e se desenvolvem ao redor do mausoléu. Com a extinção dos sovietes, algumas estruturas do país foram desvirtuadas. Moscou é a cidade com o maior número de milionários de todo o planeta. E, além disso, alberga um grande número de organizações mafiosas. Entrementes, pode ser que nesta noite um novo processo revolucionário tenha início. Shakira se apresentará a uns poucos metros do mausoléu. Alguns acreditam firmemente que o Waka Waka fará Lênin despertar - porque essa colombiana levanta qualquer morto – para então trazer de volta a tão sonhada ordem ao país.

Um comentário:

  1. Hahahahahaha, tu eh foda mesmo. Shakira despertara o Lenin, hahaha.
    bjos de uma farofeira nata.

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