segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

A Marcha do Pacífico.


Josué desloca o seu quepe levemente à direita, acomodando-o da melhor maneira a fim de atacar os feixes do sol abrasador lançados sobre a cabeceira da cordilheira. O chão pedregoso e a aridez feroz da região não são capazes de deter o trote persistente do guanaco, que mesmo com carga humana, segue o trecho no seu ritmo firme de valsa andina. No balanceado do guanaco, Josué se deslocara por mais de doze dias com o firme objetivo de cumprir sua missão. Uma missão ousada e valorosa que lhe outorgara a si mesmo.
Josué Sayri é apenas mais um garoto, entre tantos outros do empobrecido platô boliviano, que jamais viram o mar. Mas a sua missão não estava amparada em apenas realizar o sonho particular de ver a arrebentação das ondas marinhas, correr descalço sobre a areia fina ou oferecer seu rosto à maresia cortante; mais do que isso, a viagem de Josué estava amparada num imperativo legal, e também moral, que era o de cumprir com a constituição do Estado Plurinacional da Bolívia: recuperar o mar. 
Depois de longa e árdua jornada, e de haver descendido a muralha andina, ainda ao sopé da cordilheira, Josué alcançava finalmente a linha fronteiriça. Solitária e esquecida, como um cactus no deserto, encontra-se o casebre de paredes encardidas da aduana chilena.  A aparência da fronteira é de um vazio estomacal, onde apenas uma tranca velha e enferrujada cerra a passagem para as terras de dentro da república vizinha. Josué detém o guanaco, e no movimento acelerado de apeio deixa cair o quepe no chão seco. O garoto alça-o rapidamente e afasta a terra com golpes, repreendendo a si mesmo por haver deixado cair sua maior relíquia. Não era um chapéu qualquer. Era o quepe que lhe fora regalado pelo seu estimado tio Hernán, comodoro da marinha boliviana. Tio Hernán Orellana era talvez o culpado de haver proporcionado munição para essa ideia absurda de recuperar o mar. O comodoro sempre levava Josué para dentro de seu buque de guerra, de maneira que pudesse observar algumas manobras lacustres e fluviais realizadas pela marinha boliviana. Josué sempre ouvira com atenção das histórias navais e da “vocação” boliviana para o mar, embora isso nunca houvesse ficado claro em sua cabeça de garoto. O que sim lhe ficava claro, e lhe doía até o tutano, era a frustração profissional de seu querido tio, comodoro de uma marinha sem mar.
Esparramado sobre a cadeira que se recostava na parede frontal do casebre do posto fronteiriço, dormitava a sentinela responsável pelos trâmites de aduana da república ao lado. “Boas tardes senhor!”, acenou-lhe Josué, com o peito empertigado de quem se dirige a autoridades maiores, neste caso, o porteiro do Chile. “Que queres garoto”, lhe gritou a sentinela, ainda surpreendido pela aproximação silenciosa, quase rastejante, do garoto e seu animal. “E afaste esta lhama de mim!”, concluiu com o azedume típico de quem é despertado a contragosto.
“Me chamo Josué Sayry, senhor; estou a caminho do mar”, disse o garoto. “E é um guanaco, não uma lhama”, completou. “Um fedelho da sua idade não tem autorização para viajar sozinho, faça-me o favor de dar meia volta, e tome o rumo de volta da cordilheira”, ordenou a sentinela. O rosto moreno e ressequido do garoto andino expressou enorme espanto com a palavras de rechaço da sentinela, recebidas com o peso de um rochedo, justamente por ameaçarem o cumprimento de sua nobre missão. Josué insistiu: “Senhor, por favor, deixe-me passar, preciso recuperar o mar”. “Recuperar o mar?!”, exclamou a sentinela, já começando a duvidar da sanidade mental do garoto. “Escute garoto, como pensas em trazer o mar de volta? Colocá-lo sobre o lombo da alpaca e levá-lo cordilheira acima?”. Josué não deu atenção à burla da sentinela, apenas levantou o rosto e contestou com firmeza: “senhor, apenas quero cumprir a constituição boliviana; recuperar o mar é meu dever. Por isso vou trazê-lo de volta!”. “Mas o mar é nosso”, interrompeu a sentinela, “é chileno, o conquistamos justamente na Guerra do Pacífico”.  “O mar é dos marinheiros”, disse Josué, “e além do mais, meu tio diz que essa foi a guerra mais imbecil de todas as guerras, quando nossos países pelearam por um pedaço de deserto cheio de caca de pássaro e morcego, e que estávamos em condições muito desfavoráveis”, replicou o garoto. “E já lhe disse que é um guanaco!”.
“Guerra é guerra”, afirmou a sentinela demonstrando certo orgulho patriota. “Escute garoto, considero de muita honra a tua causa, porém, não posso permitir a sua entrada em território chileno, pois além de seres de menor idade, provavelmente morrerias neste deserto. Ao terminar de proferir sua sentença, a sentinela teve sua bota atingida por um muco viscoso cuspido pelo guanaco, ato típico de todos os camelídeos quando se sentem molestados. “Senhor, levante a tranca e deixe-me seguir”, insistiu Josué uma vez mais, já com a esperança de seguir caminho aos bagaços.  “Se eu não conseguir trazer o mar de volta, logo tratarão de levar a Bolívia até o mar”.

3 comentários:

  1. hahaha, muito legal. deverias escrever um livro. quero saber mais do josué/

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  2. ACHEI O DITO!...
    Sinceramente velho, muito sinestésico teu texto. Eu como um conhecedor e velho carrasco do deserto de sal Bolíviano e Chileno, senti na pele pelas tuas palavras e descrições o clima que se impunha ao garoto e sua peregrinação. E que final profético e ousado, em?...Muito bom, cara!

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  3. Me senti dentro da história com as tuas palavras

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